A ALQUIMIA PELA RAIVA - Texto da profa. Eliane Oliveira (28/09/23) -

(lições do mar 02)


Ele estava furioso. Só explodia. Só gritava. Possuído. Cuspia. Espumava. Babava. Vomitava suas entranhas. Não dava uma pausa. Não dava uma trégua. Sua força mataria um. Era bom não chegar muito perto. Eu fiquei ali diante dele olhando para ele. Quieta. Perplexa. Imóvel. Não havia nada a fazer. O medo de que ele me quebrasse as costelas me tomou e só passou quando resolvi não entrar. Foi deste lugar, de fora e distante, que, de repente, achei-o bonito. Ele era escaldante. Suntuoso. Dramático. Extático. Quis tentar uma aproximação com a sua beleza. Peguei meu baldinho. Fui até a beirinha. Humildemente. Odoyá Iemanjá. Aguei a nuca e o ventre naquele ritual para situar o corpo à água. Mas, ele não quis saber de salamaleques nem de “finge-que-nada-está-acontecendo”, e empurrou minhas pernas, que até doeu. Não foi nada. Mas, veio novamente e, desta vez, deu-me uma rasteira que caí num caldo em plena beirinha. Como quem me dissesse “você ainda não entendeu nada”. Ele era pura contradição me chamando “vem” e me expulsando “vai”, sendo que, naquele dia pelo menos, no “vai”, eu podia tê-lo mais integro e me integrar a ele com mais integridade. Daí, foi um passo adiante e outro atrás, dançando em seu ritmo colérico, até conseguir banhar-me da turbulência em forma de calma dentro do balde. Um tiquinho da sua potência apreendida para me refrescar o corpo. Mas, ele lá. E eu aqui. Quieta. Distante. Não havia nada a fazer. Ele estava muito comprometido com sua obra e restava a mim participar dele apenas assistindo ao seu espetáculo de ressaca. Eu vi o que jamais podia ter visto se tivesse entrado: que “o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito (Caymmi).

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A mãe sabia que os filhos uma hora sentiriam raiva. Disse-lhes: "quando vocês sentirem raiva, cantem bem alto." Estimulou-os a fazerem música, a aprenderem violão, pandeiro, piano. Dançar e gargalhar. Transmutar no coração a poderosa energia do fogo do ventre. O fogo pode ser destrutivo, mas também é digestivo. É ele quem transmuta o cobre em ouro. Alquimia. Inspiração divina. Entusiasmo. Da raiva, pode não sair violência. A raiva pode gerar beleza se estiver comprometida com arte. A raiva é uma força poderosa. Não podemos fingir-que-nada-está-acontecendo. Mas, podemos traduzi-la em samba, em dança, em canto. Quando você vir alguém com raiva, fique na praia. Mantenha distância, e talvez até possa apreciar qualquer beleza nisso (surpreenda-se). Se for você mesmo, não faça guerra. Faça música. E oferecerá ao mundo o seu bonito mar espumoso em ressaca.



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