VOLTE
PARA SEU LUGAR (ou VADE RETRO)
Texto da profa. Eliane Oliveira
05/10/18
Em desertos, poucos se arriscam. Os teimosos, os fortes e
os estrategistas. Gafanhotos, lagartos, escorpiões, escaravelhos, cobras,
camelos. Cactus. Cascudos no corpo e no espírito. Paisagem monocromática. Ocre.
Pálida. Seca. Árida. Crua. Escassa. O que eu penso quando penso em deserto é em
areia e pedras. Muito calor de dia e muito frio à noite. E na boa sorte de um
oásis. Humanos não costumam desejar os desertos. Se estão por lá, estão de
passagem. Nômades. Aceitam o deserto somente se ele estiver sob seu controle. É
para sua sobrevivência. Do contrário, viver no deserto seria a própria
experiência do inferno.
Ou não.
Uma vez, numa terra muito muito distante, um mestre vagava
por um deserto. Ele fora para o deserto justamente para encontrar o deserto e
aceitar as condições do deserto. Não levou provisões nem tinha abrigo. Não
comia nem bebia porque quis não comer e não beber. Em sua companhia, ninguém, a
não ser a sua própria sombra. Como quem levasse seu cachorrinho pra passear e o
desatasse da coleira, o mestre deixava sua sombra correr solta, para ela ser o que
é, sem repressões ou julgamentos. Só sombra. Ali, ela estava livre. Podia se
esbaldar. Na imensidão daquele mar de nada por todos os lados, sob a testemunha
do sol, era só ela no pedaço, sem outros concorrentes pra dividir espaço e
atenção. A não ser o próprio mestre.
Até que um dia, após quarenta dias e quarenta noites, a
sombra do mestre se sentiu maior que o mestre. A dona da cocada. O ó do
borogodó. Por cima da carne seca. “Quem é esse aí? Um mendigo. Um fracassado.
Um fraco. Um coitado. Não preciso dele. Sou mais forte que ele. Eu serei seu
mestre”. Resolveu se descolar. Saltou na frente do mestre. Diante dele,
encarou-o. Fez uma cara tenebrosa de fantasma. Esticou os braços, abriu os
dedos das mãos em garras balançantes e disse:
- Buuuuuuuuuuuuu!
O mestre achou fofo que ela estava querendo chamar sua
atenção, mas não deu bola. Continuou seu caminho. Estava em oração.
A sombra se perturbou. Era bem boba, ela. Mas tinha
poderes. Ilusionista. Estalou os dedos e, num segundo, virou um monstro todo vermelho
e peludo, com chifres na cabeça, um rabo grande e pontudo, pés de cabra,
perfume de enxofre. Esticou os braços, abriu os dedos das mãos em garras e
falou com voz de diabo:
-Eeeeuuu sooouuuu ooo diaaabooooo!
Desta vez, o mestre não aguentou. Caiu no chão. Chorou.
Rolou de rir. Riu tanto que quase fez xixi nas calças. Só não fez porque não
tinha mais muita água no seu corpo, dado seu jejum. Ela era muito engraçada.
A sombra não achou graça nenhuma. Ela não estava gostando
nada disso. Havia alguma coisa estranha.
De repente, um Samadhi da sombra. “Hummm” - ela entendeu
tudo. A não resistência do mestre ao deserto e a ela não representava maior
poder para ela, como ela, ambiciosa, precipitadamente, pensara. Era justamente
o contrário. Enquanto ela vivia na inconsciência do mestre, podia dominá-lo. Na
inconsciência, ela é forte. Mas, agora, o mestre a via. Não só a via. Sereno,
abria o cárcere de si onde, paradoxalmente, ele mesmo a mantinha como seu
algoz. Integrou as partes de si que antes rejeitava. E isso mudou tudo.
Libertando-a, enfraqueceu-a e se libertou.
Mas ela não queria largar o osso. Relutou em admitir que
perdera o poder sobre ele. Resolveu reagir. Jogou pesado. Sangue nos olhos.
Sacou da manga uma carta muito sedutora. Tentou seduzi-lo com a vontade de
poder. Babou ovo, alfinetando ao mesmo tempo, é claro. Coisa de sombra. Acionou
a infalível segunda pessoa para aliciá-lo:
- Oh, mestre, tu és foda, mestre! Gratidão por ser meu
mestre, mestre! Tu vens até o deserto, não comes, não bebes, ó Guru. Há
quarenta dias, não sabes o que é um banho, mestre. Estás fedendo, mestre.
Pegaste uma gripe com a oscilação do frio da noite e do quente do dia. E, ainda
por cima, ontem tu ficaste tão tonto de insolação, fome, sede e gripe que
tombaste e bateste com a cabeça numa pedra. Essa ferida aberta está bem feia.
Cheia de pus. Deve doer e pulsar, né, mestre? Não há nada pra cuidar dela. Não
tens onde dormir, nem travesseiro, nem cobertor. Só mesmo um mestre, só mesmo
um grande iluminado, como tu, para não desistires da vida, apesar dessas
condições, e permaneceres em meditação e oração. Se fosse qualquer homem comum,
não aguentaria. Não é à toa que tu és um mestre, mestre. Tudo isso te dá um
poder que supera a todos. Tu és tão poderoso que poderia transformar aquela
pedra em um delicioso e enorme pão francês quentinho, com queijo e goiabada,
mestre. Faz isso, mestre! Em nome da continuidade da tua peregrinação pelo
deserto, tão sábia e tão elevada.
O mestre soltou um pum simbólico (sem cheiro, porque não
comia há 40 dias) e respondeu:
- Nem o maior pão francês quentinho do mundo me saciaria,
oh alma penada com cara de buda. Minha fome é maior. Quero comer o alimento que
sai da boca de Deus. Só isso me nutre porque é eterno.
Uma tosca sombra é sombra tosca. Vê tudo por cima. No
limite da superfície. Seus olhos são densos. Entupidos. Estúpidos. Cataráticos.
Achou que o golpe do estômago seria suficiente pra fazer o mestre comer na
palma de sua mão. Não foi.
- Entendi, oh, mestre, oh majestoso, digníssimo,
ilustríssimo, Guru. Tu tens razão. Pão engorda. Só para seres pouco evoluídos.
Tu não precisas mais de pão. Agora só jejum. Afinal, pra quê corpo? Tu
transcendestes o corpo, oh levíssimo e flutuante, mestre! És praticamente o
super-homem. O filho de Deus. Tu és um anjo. Não duvido que o teu nobre poder
espiritual o farias levitar sobre esse abismo de pedras, oh mestre. O que é um
mísero abismo de pedras para um mestre como tu, oh, alado ser? Jogue-se daqui,
oh Senhor das alturas, e serás como uma pluma a deslizar no ar.
O mestre tirou uma meleca seca do nariz que o estava
incomodando o dia inteiro, e arremessou-a, com um peteleco, na direção da
sombra:
- Você está vendo muita sessão da tarde. Não me provoque.
Nem a Deus. Deixe-nos em paz! Temos mais o que fazer.
A sombra já estava ficando louca. “Você está me deixando
louca", pensava. É pouco criativa. Não tendo mais ideia do que fazer para
tirar o mestre do sério, apelou para o seu óbvio. O óbvio dela deveria ser o
óbvio para todos. Ela projeta na tela do outro o filme dela. A riqueza. Era o
que ela mais gostava. Ninguém, ainda mais um mendigo do deserto, rejeitaria a
riqueza. Dinheiro. Reinados. Importância. Diretoria. Presidência.
Chamou o mestre num canto e falou baixo como se o telefone
estivesse grampeado:
- Aí, chefia. Fecha comigo que minha parada é sinistra. Tu
vai ficar rico, malandro. É só você vir trabalhar pra mim e me chamar de chefe.
Você tem talento pro negócio. Se você for meu empregado e passar a me servir,
eu lhe dou todos os reinos do mundo.
O mestre só assobiou alto e disse:
- Junto, sombra minha, Junto! VENHA CÁ, VENHA, QUERIDA! VÁ
PARA TRÁS. PARA TRÁS DE MIM. VOLTE PARA O SEU LUGAR. SEU LUGAR DE SOMBRA É ME
SEGUIR. VOCÊ ME SERVIRÁ PARA ME REVELAR. DESPERTEI. EU E VOCÊ VAMOS JUNTOS.
AGORA QUE A VI E A RECONHEÇO, EU A ACOLHO. MAS QUEM ME LEVARÁ, SOU EU.
A sombra colocou o rabinho entre as pernas, fez beicinho,
um muxoxo e, “cain, cain, cain”, voltou inconformada para trás de seu mestre.
Dali pra diante, era assim. De vez em quando, saiam para
passear no deserto. O mestre a soltava pra correr. Jogava uma bolinha lá na
frente pra ela ir pegar e ficava só observando. Ela, sob missão, pulava, latia,
rangia, mordia, arranhava, enraivecia, tripudiava, acusava, julgava, caluniava,
mentia, boicotava (se), corrompia (se), violentava, até se cansar e voltar com
a bolinha na boca, para o seu lugar. Que não era longe dele. Era perto. Mas
atrás.
...
Sem reconhecer minhas escuridões, jamais saberei que estou
presa numa caverna. Não verei o sol porque, pra mim, escuridão e eu somos a
mesma e única coisa. Nem saberei da existência do sol. Sem reconhecer e aceitar
minhas sombras, identificarei um cisco do olho do outro, mesmo estando cega com
uma trave em meus olhos. Se não reconhecer como minhas as partes que rejeito em
mim, procurarei fora de mim um culpado, um inimigo, um demônio, um bode
expiatório para cuspir, humilhar, violentar, culpar, banir, e me deixar
acreditar que o vejo no outro não se parece nada comigo. Ilusão. Preferimos a
ilusão do que o encontro no deserto com a nossa sombra. A saída é Plenitude.
Integração. Yoga.
Inspirado na interpretação de Carl Gustav JUNG sobre a
manifestação da sombra no episódio do evangelho de Mateus 4.
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