TRANQUILIZE-SE
Por Rubem Alves
Então você está com medo porque acha que a sua vida está prestes a desmoronar. Paredes que você considerava firmes estão fora de prumo, há sinais de rachaduras no reboco. As lâmpadas no teto balançam sugerindo terremotos que se aproximam. Pensa até em mudar para outras paragens (ninguém segura terremoto). Você escora as paredes mas não põe muita fé no que está fazendo; escora outras, mas você é fraco demais para tanta confusão. Parece que tudo é inútil. As coisas não se encaixam, sua alma se agita, há muito que você não conhece a felicidade de uma noite de sono feliz, cada manhã é uma angústia, seu corpo está perturbado, faz coisas que não deveria fazer, fere pessoas por onde passa, justamente as pessoas que você ama e que são a razão de ser da sua vida. É triste isto: que, frequentemente, sejam as pessoas amadas as que vão receber o veneno que se ajuntou em nós. Aí, ao sentimento de catástrofe, junta-se o sentimento de culpa, como se você fosse a causa de tudo o que existe de errado. Quando isso ocorre, a gente começa a sentir raiva e dó da gente mesmo. Essa combinação de sentimentos é letal. Uma vez, vi uma maria-fedida chupando os sucos de uma lagarta: enfiou dentro dela uma pequena tromba e foi chupando, chupando, do mesmo jeito que se chupa iogurte com canudinho. A lagarta foi esvaziando até ficar como um saco de pele vazio. Cuidado! Os sentimentos de autopiedade podem fazer com você o que a maria-fedida fez com a lagarta: eles nos exaurem de nossas energias.
Por Rubem Alves
"Problemas, sofrimentos, frustrações são
partes da vida. Não é possível evitá-los. Mas é possível sofrê-los com
sabedoria."
Então você está com medo porque acha que a sua vida está prestes a desmoronar. Paredes que você considerava firmes estão fora de prumo, há sinais de rachaduras no reboco. As lâmpadas no teto balançam sugerindo terremotos que se aproximam. Pensa até em mudar para outras paragens (ninguém segura terremoto). Você escora as paredes mas não põe muita fé no que está fazendo; escora outras, mas você é fraco demais para tanta confusão. Parece que tudo é inútil. As coisas não se encaixam, sua alma se agita, há muito que você não conhece a felicidade de uma noite de sono feliz, cada manhã é uma angústia, seu corpo está perturbado, faz coisas que não deveria fazer, fere pessoas por onde passa, justamente as pessoas que você ama e que são a razão de ser da sua vida. É triste isto: que, frequentemente, sejam as pessoas amadas as que vão receber o veneno que se ajuntou em nós. Aí, ao sentimento de catástrofe, junta-se o sentimento de culpa, como se você fosse a causa de tudo o que existe de errado. Quando isso ocorre, a gente começa a sentir raiva e dó da gente mesmo. Essa combinação de sentimentos é letal. Uma vez, vi uma maria-fedida chupando os sucos de uma lagarta: enfiou dentro dela uma pequena tromba e foi chupando, chupando, do mesmo jeito que se chupa iogurte com canudinho. A lagarta foi esvaziando até ficar como um saco de pele vazio. Cuidado! Os sentimentos de autopiedade podem fazer com você o que a maria-fedida fez com a lagarta: eles nos exaurem de nossas energias.
Aconselho-o a tomar um banho frio. Banho quente
não. Dá moleza. Fuja de quem tem dó de você e deseja consolá-lo. Prefira a voz
dura do bruxo D. Juan. O aprendiz de feitiçaria, Carlos Castanheda, começou com
uma conversa choramingas e logo recebeu do feiticeiro um golpe: “Sua cabeça é um saco de lixo. Você precisa
ouvir a sabedoria da morte. A morte é a única conselheira sábia que temos.
Sempre que você sentir, como você sente sempre, que tudo está errado e que você
está prestes a ser aniquilado, volte-se para a sua morte e pergunte-lhe se é
assim mesmo. Sua morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa
fora do seu toque. Sua morte lhe dirá: ‘Eu ainda não o toquei’”.
A morte ainda não o
tocou. Portanto, seus motivos de queixa não têm importância. Mais cedo ou mais
tarde, seus problemas vão se resolver, de um jeito ou de outro.
Há dois tipos de problemas.
Primeiro, os problemas reais: uma cólica renal, uma
goteira, uma conta para pagar, uma perna quebrada, um pneu furado, os pratos do
jantar para lavar, um amor que não deu certo, uma pessoa querida que morreu.
Esses problemas se resolvem de duas formas. Os
pratos a gente lava, o pneu a gente troca, a perna quebrada se encana.
Problemas que devem ser resolvidos sem reclamação e sem muito falatório, pois
reclamações e falatórios, além de nada contribuírem para a solução dessas
contrariedades, só servem para produzir irritação. Os faladores são especialistas
nisso.
Outros não têm solução. O amor que não deu certo, a
pessoa querida que morreu: só resta chorar. E o importante é enxotar os
consoladores, que são a praga-mor daqueles que estão sofrendo. Os consoladores
acham sempre que suas tolas palavras são capazes de encher o vazio do
sofrimento.
Problemas, sofrimentos,
frustrações são partes da vida. Não é possível evitá-los. Mas é possível
sofrê-los com sabedoria.
Por isso, cuide de seu corpo e de sua alma.
Frequentemente, as pessoas me perguntam: “Tudo bem?”. Eu respondo: “Nem para
Deus, todo-poderoso, as coisas vão bem. As coisas não vão bem mas eu vou bem”.
É como no avião: lá fora está uma terrível tempestade, nuvens pretas, não se vê
nada, os raios iluminam o escuro, o avião pula como um cavalo bravo. E eu, já
que não posso mesmo fazer coisa alguma, tomando o meu uisquinho. O medo é
enorme. Mas entre medo sem uísque e medo com uísque, prefiro a segunda
alternativa. Na vida é assim: tudo vai
mal, mas preciso que o corpo e a alma sejam um centro de tranquilidade.
Mas essa tranquilidade não acontece por acaso. Ela
é o resultado de disciplina.
Há uma série de encheções à sua espera: listas de coisas para
fazer, compras, providências práticas, crianças a serem levadas à escola.
Claro, você não poderá fugir dessas responsabilidades. Mas não deixe que sejam
elas as primeiras a entrar dentro do seu corpo. Lide com elas com a sobriedade
Zen. Caso contrário, elas tomarão conta do seu corpo e da sua alma e se
transformarão numa legião de demônios a atormentá-lo através do dia.
Tire quinze minutos da manhã, antes de fazer
qualquer coisa. Não é muito tempo. E você merece. Ponha uma música pra tocar.
Há tanta coisa bonita. O canto gregoriano, as sonatas de Scarlatti, as sonatas
para violino e piano de Bach, as mazurcas de Chopin (pura brincadeira), as Cenas
infantis ou as Cenas de floresta de Schumann. Esses são gostos meus.
Você terá os gostos seus. O importante é que, no início da manhã, a música seja
cheia de paz.
Enquanto você ouve a música, leia. Estou me
deleitando com a leitura do livro de Eclesiastes, e estou mesmo me atrevendo a
uma tradução poética minha: “Neblinas, neblinas, tudo são neblinas”, diz o
poeta. “O homem, por mais que trabalhe, poderá por acaso produzir algo sólido,
que não seja neblina? Uma geração passa, outra geração lhe sucede – como a
neblina; somente a terra permanece…”.
Esse sentimento de que
tudo é espuma e areia tem um efeito tranquilizador. Tudo é neblina, tudo é
espuma. Pense na praia, ao final do dia,
arrasada pela praga dos humanos que a violentam de todas as formas possíveis.
Vem a noite. A solidão. Sobe a maré. Pela manhã a praia é uma pele lisa, jovem,
sem nenhuma cicatriz. Toda a loucura humana foi esquecida. Pois assim mesmo é a vida: tudo será
esquecido – de sorte que não vale a pena nos afligirmos.
E reze o poema de Ricardo Reis, resumo da minha
filosofia de vida:
“Mestre, são plácidas todas as horas que nós
perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores. Não há tristezas
nem alegrias em nossa vida. Assim, saibamos, sábios incautos, não a viver, mas
decorrê-la, tranquilos, plácidos, tendo as crianças por nossas mestras, e os
olhos cheios de natureza. À beira-rio, à beira-estrada, conforme calha, sempre
no mesmo leve descanso de estar vivendo. O tempo passa. Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase
maliciosos, sentir-nos ir. Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao
deus atroz que os próprios filhos devora sempre. Colhamos flores. Molhemos
leves as nossas mãos nos rios calmos para aprendermos calma também. Girassóis
sempre fitando o sol, da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter
vivido”.
Igual ao sábio das Escrituras é a Cecília Meireles:
se a morte ainda não o tocou, trate de
aprender a viver com sabedoria. A sabedoria não é garantia de felicidade. A
vida não oferece garantias de felicidade para ninguém. Como disse
Guimarães Rosa, "felicidade só em
raros momentos de distração”. Mas
a sabedoria nos livra dos sofrimentos provocados pela nossa própria loucura.
Quem é sábio sofre pelas razões justas e, por isso mesmo, sofre com
tranquilidade. A sabedoria nos traz paz de espírito. Que é aquilo que mais o
coração deseja. Paz de espírito é como um campo batido pelo vento, como um
riacho de águas limpas, como uma borboleta pousada sobre uma flor.
A cabeça é um útero terrível. Dela tanto podem sair
flores e borboletas quanto charcos e escorpiões. De vez em quando, ela é
invadida pelos demônios das catástrofes e dos horrores – e aí não existe corpo
que aguente. Os tais demônios são produtores de filmes, que ficam sendo
exibidos em sessão contínua em nossa cabeça.
ALVES,
Rubem. Cenas da Vida. Campinas:
Papirus, 1997
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