SUBIR PELO LADO QUE DESCE
por Lya Luft
"Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce”.
por Lya Luft

"Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce”.
Ouvindo
esta frase, imaginei qualquer pessoa nessa acrobacia que as crianças
fazem ou tentam fazer: escalar aqueles degraus que nos puxam
inexoravelmente para baixo. Perigo, loucura, inocência, ou uma boa
metáfora do que fazemos diariamente?
Poucas
vezes me deram um símbolo tão adequado para a vida, sobretudo
naqueles períodos difíceis em que até pensar em sair da cama dá
vontade de desistir. Tudo o que quereríamos era taparmos a cabeça e
dormirmos, sem pensarmos em nada, fingindo que não estamos nem aí…
Porque
Tanatos, isto é, a voz do poço e da morte, nos convoca a cada
minuto para que, enfim, nos entreguemos e acomodemos. Só que
acomodar-se é abrir a porta a tudo aquilo que nos faz cúmplices do
negativo.
Descansaremos,
sim, mas tornando-nos filhos do tédio e amantes da pusilanimidade,
personagens do teatro daqueles que constantemente desperdiçam os
seus próprios talentos e dificultam a vida dos outros.
E
o desperdício da nossa vida, talentos e oportunidades é o único
débito que no final não se poderá saldar: estaremos no
arquivo-morto.
Não
que não tenhamos vontade ou motivos para desistir: corrupção,
violência, drogas, doença, problemas no emprego, dramas na família,
buracos na alma, solidão no casamento a que também nos acomodamos…
tudo isso nos sufoca. Sobretudo, se pertencermos ao grupo cujo lema
é: Pensar, nem pensar… e a vida que se lixe.
A
escada rolante chama-nos para o fundo: não dou mais um passo, não
luto, não me sacrifico mais. Para quê mudar, se a maior parte das
pessoas nem pensa nisso e vive da mesma maneira, e da mesma maneira
vai morrer?
Não
vive (nem morrerá) da mesma maneira. Porque só nessa batalha
consigo mesmo, percebendo engodos e superando barreiras, podemos
também saborear a vida. Que até nos surpreende quando não se
esperava, oferecendo-nos novos caminhos e novos desafios.
Mesmo
que pareça quase uma condenação, a ideia de que viver é subir uma
escada rolante pelo lado que desce é que nos permite sentir que
afinal não somos assim tão insignificantes e tão incapazes.
Então,
vamos à escada rolante: aqui e ali até conseguimos saltar degraus
de dois em dois, como quando éramos crianças e muito mais livres,
mais ousados e mais interessantes.
E
porque não? Na pior das hipóteses, caímos, magoamo-nos por dentro
e por fora, e podemos ainda uma vez… recomeçar.
Luft,
Lya. Pensar é transgredir, Rio
de Janeiro: Record, 2004
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