AGENDAR
A VIDA
Lia Luft
Abro
uma página da minha agenda para demarcar mais uma vez o território
de minha liberdade e o dos meus deveres – que é onde ela começa a
perder pé.
A
fantasia não pede licença para se desenrolar: logo vejo uma
infinidade de mesas e escrivaninhas, cada uma com sua agenda, nela a
floresta dos compromissos, mal sobrando alguma trilha estreita para
andar e respirar. (Nas folhas desta minha atual, quero abrir
entrelinhas para contemplar a árvore em flor diante da minha janela,
ou pegar nos braços uma das crianças que povoam esta casa.)
Vejo
também agendas quase vazias onde se procura melancolicamente algo
para quebrar o sem sentido da vida: nenhuma visita, uma data de
aniversário, nenhum afeto nomeado, nem ao menos um pagamento nesses
dias que parecem um deserto sem contornos.
Nem
uma miragem ao longe?
Pessoalmente
não vivo sem uma agenda, aquelas de bloco, ao lado do computador. Às
vezes, olhar a folhinha me dá alegria: um encontro bom, ou um dia
inteiro só pra mim. Em outras folhas, um engarrafamento de garatujas
(minha letra, horror das professoras desde s primeiros anos de
escola) com mais compromissos do que o meu fundamental desejo de
liberdade quereria.
Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na grama do parque ou jardim, por menor que ele seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando suas formas: camelo, coelho, árvore ou anjo.
Ou:
quinze minutos para se recostar para trás na cadeira (pode ser do
escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela, ir até a sala,
esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e ouvir
música, ver televisão, ler, ler, ler… ou simplesmente não fazer
nada.
O
ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada.
Não
falo da inércia, do desânimo, do vazio melancólico. Jamais falarei
de robe velho e pantufas (vi numa vitrine algumas com cara de
cachorro e até orelhas!) pela casa até o meio da tarde.
Falo
de viver.
"Parar,
olhar, escutar", dizia um aviso nos trilhos do trem quando havia
trem entre minha cidade e Porto Alegre. A gente passava de carro
sobre o trilho, e eu imaginava o horror de alguém infringir isso e
ser explodido pelo monstro de ferro e fumaça.
A
vida há de rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil
quem se esquecer de, às vezes, parar pra pensar… mas sem se
desmontar; olhar em torno ou para dentro: paisagens belas, ou áridas
(sempre dá pra plantar um capim) ou quem sabe coloridas (a alma pode
brincar de esconde-esconde entre as folhas).
E
escutar: a música do universo, o canto do sabiá (que tem começado
às três da madrugada fria, atarantado neste clima estranho); a
risada da criança no andar de cima; enfim, o chamado da vida que nos
convoca de mil formas: anda, sai do marasmo, viveeeeeeeeeeee!!
Que
nossas agendas (também as interiores) nos permitam muitas vezes a
plenitude do nada sorvido como um gole de champanha, celebrando tudo.
Sem culpa..
Luft,
Lia. Pensar é Transgredir, Rio de Janeiro: Record, 2004.
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