VIVER
NÃO TEM REMÉDIO
Jorge
Forbes (Psicanalista)
Para
tudo tem remédio. Quem, na infância, não ouviu essa frase da boca
de um parente mais velho, de um avô, de uma avó? Habitualmente,
terminava pela expressão “meu filho”, acentuando a
característica de afago carinhoso da frase:
-
Para tudo tem remédio, meu filho.
Entendíamos
que era um consolo pelas dificuldades que enfrentávamos e que só o
sábio tempo saberia cicatrizar as marcas das feridas que, aos olhos
de hoje, nos trazem um sorriso condescendente: a bola furada, a
bicicleta batida, a viagem perdida.
A
época atual, marcada por uma forte ideologia biologizante, quer
transformar esse carinho em verdade científica. Tomando a sério a
expressão “para tudo tem remédio”, querem nos levar a concluir
que todo problema é doença, pois é doença aquilo que se trata com
remédio.
Surgem
livrinhos para ensinar as pessoas a se autodiagnosticar. São
amplamente difundidos em serviços de saúde. Ensinam, por exemplo, a
detectar a depressão. Trazem uma lista de questões elementares. Se
você responder “sim” a mais de três, estará feito o
diagnóstico: você tem dormido demais? Tem tido insônia?
Você engordou nos últimos meses? Andou emagrecendo? Tem notado uma
certa apatia, desinteresse? Tem se sentido excitado? Etc.
Não misturemos, nesta crítica, o imenso avanço verificado na farmacologia nos últimos anos. O problema é a ideologia que veio junto. Trata-se do neodarwinismo, que busca na biologia a explicação de todos os afetos. O neurobiólogo português Antonio Damásio, professor nos Estados Unidos, e o sociólogo nipo-americano Francis Fukuyama contribuem à fama dessa visão, em alta no mercado daqueles que acham viver muito complicado. E que é melhor, como os animais, já trazer no código genético a lição de casa feita do que se deve ou não desejar, amar, e de como gozar plenamente, como sugere Fukuyama em A Grande Ruptura.
A
menina apaixonada poderia corrigir, com medicamentos, o namorado
capenga, transformando-o em um príncipe potente, magro e
bem-humorado ao oferecer-lhe coquetéis repetitivos de Viagra,
Xenical e Prozac. Médicos começam a ser agredidos em ambulatórios
públicos quando se recusam a prescrever remédios a seu ver
inadequados ao paciente e que, no entanto, lhe são violentamente
exigidos, como se não dá-los fosse negar, ao paciente, uma
felicidade de propaganda.
O
fenômeno do controle biológico do bem-estar e da sexualidade também
apresenta repercussões sociais. Quem não se lembra da história do
menino de seis anos de idade que, ao mostrar a língua para a
professora de uma escola norte-americana, foi punido como pervertido
sexual, pois estaria fazendo uma proposta indecorosa? Procura-se
padronizar tudo, cada gesto, cada cumprimento. Triste fim daquilo que
ficou conhecido como politicamente correto...
E
quando alguém comete um desatino, como matar a namorada, e esse
alguém é uma pessoa como todo mundo, sem a caricatura do meliante,
imediatamente buscam-se explicações médicas, como se os “normais”
estivessem a salvo de desatinos. Não, não há como transformar a
vida em algo irresponsável, insosso, inodoro, incolor, onde tudo
teria hora e lugar predeterminados.
Se
doença tem remédio, a vida não tem; ela é um renovado contrato de
risco. Fico com a máxima do psicanalista Jacques Lacan: “De nossa
posição de sujeito somos sempre responsáveis”. Surpresas,
encontros, ocorrem todos os dias. Porém, o sentido que damos a eles
é de nossa responsabilidade.
Grandes,
podemos dizer ao vovô:
-
Viver não tem remédio. Que bom!
Forbes,
Jorge - In: Você quer o que deseja?, Best Seller: Rio de
Janeiro, 2011
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