O
DESPERTAR
Trecho do Livro "Sidarta"
Hermann
Hesse
Caminhando cada vez mais devagar, absorvido pelos pensamentos, Sidarta perguntou-se a si mesmo: "Mas que desejaste aprender dos teus mestres e extrair dos seus preceitos? Que será aquilo que eles, que tanto te ensinaram, não conseguiram propiciar-te?" E ele encontrou a resposta: "Era meu desejo conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo: Porém não pude superá-lo. Apenas logrei iludi-lo. Consegui, sim, fugir dele e furtar-me às suas vistas. Realmente, nada neste mundo preocupou-me tanto quanto esse eu, esse mistério de estar vivo, de ser um indivíduo, de achar-me separado e isolado de todos os demais, de ser Sidarta! E de coisa alguma sei menos do que sei quanto a mim, Sidarta!"
Como
que agarrado a esse raciocínio, o moço interrompeu a lenta
caminhada e de um pensamento nasceu outro, diferente: "O fato de
eu não saber nada a meu próprio respeito, o fato de Sidarta ter
permanecido para mim um ser estranho, desconhecido, tem sua
explicação numa única causa: tive medo de mim; fugi de mim mesmo!
Procurei o Átman, procurei o Brama, sempre disposto a fraturar e a
pelar o meu 'eu', a fim de encontrar no seu âmago ignoto, o núcleo
de todas as cascas, o Átman, a vida, o elemento divino, o Último.
Mas, enquanto fazia isso, perdi-me a mim mesmo."
Abrindo
os olhos, Sidarta olhou ao seu redor, com o rosto iluminado por um
sorriso. Perpassava-lhe pelo corpo, até aos dedos dos pés, a
profunda sensação de ter acordado de um sonho prolongado. Em
seguida, reiniciando a sua marcha, estugou o passo, como quem sabe o
que lhe convém realizar.
"Ah,
não!" - pensou, aliviado, respirando a plenos pulmões - "daqui
em diante não admitirei nunca mais que Sidarta me escape! Nunca mais
o meu pensar e a minha vida terão por ponto de partida o Átman e o
sofrimento do mundo! Cessarei de matar-me e de fraturar-me, com o
intuito de achar um mistério atrás dos destroços. Não me deixarei
orientar nem pelo Yoga-Veda, nem pelo Atarva-Veda, nem por ascetas,
nem por doutrina alguma. Aprenderei por mim mesmo; serei meu próprio
aluno; procurarei conhecer-me a mim e desvendar aquele segredo que é
Sidarta!"
Olhou
o mundo a seu redor, como se o enxergasse pela primeira vez. Belo,
era o mundo! Era variado, era surpreendente e enigmático! Lá, o
azul; acolá, o amarelo! O céu a flutuar e o rio a correr, o mato a
eriçar-se e a serra também! Tudo lindo, tudo misterioso e mágico!
E no centro de tudo isso achava-se ele, Sidarta, a caminho de si
próprio. Todas essas coisas, esses azuis, amarelos, rios, matos,
penetravam nele pela primeira vez, através dos seus olhos. Já não
eram feitiço de "Mara" (1). Deixavam de ser o véu de
"Maia" (2). Não havia mais aquela multiplicidade absurda,
casual, do mundo dos fenômenos, desprezados pelos profundos
pensadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade, e esforçam-se
por achar a unidade. O azul era azul, o rio era rio e, posto que,
nesse azul e nesse rio abrangidos por Sidarta, existisse, escondida,
a idéia da unidade, o Divino, era, contudo, peculiar do Divino ser
amarelo aí e azul lá, céu ali e mato acolá, e também ser
Sidarta, aqui, neste lugar. O sentido e a essência não se
encontravam em algum lugar atrás das coisas, senão em seu interior,
no íntimo de todas elas.
"Andei
deveras surdo e insensível!" - disse de si para si, enquanto
avançava rapidamente pela estrada. - "Quem se puser a decifrar
um manuscrito, cujo significado lhe interessar, tampouco menosprezará
os sinais e as letras, qualificando-os de ilusão, de casualidade, de
invólucro vil, senão os lerá, estudá-los-á, amá-los-á, letra
por letra. Eu porém, que almejava ler o livro do mundo e o livro da
minha própria essência, desprezei os sinais e as letras, em prol de
um significado que lhes atribuía de antemão.
Chamei
de ilusão o mundo dos fenômenos. Considerei meus olhos e minha
língua apenas aparentes, casuais, desprovidos de valor. Ora, isso
passou. Despertei. Despertei de fato. Nasci somente hoje."
(1) Mara: literalmente morte, destruição. Em sentido figurado: o demônio, o tentador.
(2) Maia: na terminologia brâmane, é matéria imperecível, preexistente a todas as coisas, e da qual se servem os deuses para criar as formas aparentes, irreais, falazes. Assim se torna sinônimo de ilusão, magia, feitiço.
HESSE, Hermann. Sidarta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
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