ENSINAR A ALEGRIA
Rubem Alves
Muito se tem falado sobre o sofrimento dos professores. Eu que ando sempre na direção oposta e acredito que a verdade se encontra no avesso das coisas, quero falar sobre o contrário: a alegria de ser professor, pois, o sofrimento de ser um professor é semelhante ao sofrimento das dores de parto: a mãe o aceita e logo dele se esquece, pela alegria de dar à luz um filho.
Reli,
faz poucos dias, o livro de Hermann Hesse, O jogo das contas de
vidro. Bem ao final, à guisa de conclusão e resumo da estória,
está este poeminha de Ruckert:
Nossos
dias são preciosos mas com alegria os vemos passando se no seu lugar
encontramos uma coisa mais preciosa crescendo: uma planta rara e
exótica, deleite de um coração jardineiro, uma criança que
estamos ensinando, um livrinho que estamos escrevendo.
Este
poema fala de uma estranha alegria, a alegria que se tem diante da
coisa triste que é ver os preciosos dias passando… A alegria está
no jardim que se planta, na criança que se ensina, no livrinho que
se escreve. Senti que eu mesmo poderia ter escrito essas palavras,
pois sou jardineiro, sou professor e escrevo livrinhos. Imagino que o
poeta jamais pensaria em se aposentar. Pois quem deseja se aposentar
daquilo que lhes traz alegria? Da alegria não se aposenta… Algumas
páginas antes o herói da estória havia declarado que, ao final de
sua longa caminhada pelas coisas mais altas do espírito, dentre as
quais se destacava a familiaridade com a sublime beleza da música e
da literatura, descobria que ensinar era algo que lhe dava prazer
igual, e que o prazer era tanto maior quanto mais jovens e mais
livres das deformações da deseducação fossem os estudantes.
Ao
ler o texto de Hesse tive a impressão de que ele estava simplesmente
repetindo um tema que se encontra em Nietzsche. O que é bem
provável. Fui procurar e encontrei o lugar onde o filósofo (escrevo
esta palavra com um pedido de perdão aos filósofos acadêmicos, que
nunca o considerariam como tal, porque ele é poeta demais, "tolo"
demais…) diz que "a felicidade mais alta é a felicidade da
razão, que encontra sua expressão suprema na obra do artista. Pois
que coisa mais deliciosa haverá que tornar sensível a beleza?
Mas
esta felicidade suprema", ele acrescenta, é ultrapassada na
felicidade de gerar um filho ou de educar uma pessoa".
Passei
então ao prólogo de Zaratustra.
Quando
Zaratustra tinha 30 anos de idade deixou a sua casa e o lago de sua
casa e subiu para a montanha. Ali ele gozou do seu espírito e da sua
solidão, e por dez anos não se cansou. Mas, por fim, uma mudança
veio ao seu coração e, numa manhã, levantou-se de madrugada,
colocou-se diante do sol, e assim lhe falou: Tu, grande estrela, que
seria de tua felicidade se não houvesse aqueles para quem brilhar?
Por dez anos tu vieste à minha caverna: tu te terias cansado de tua
luz e de tua jornada, se eu, minha águia e minha serpente não
estivéssemos à tua espera. Mas a cada manhã te esperávamos e
tomávamos de ti o teu transbordamento, e te bendizíamos por isso.
Eis
que estou cansado na minha sabedoria, como uma abelha que ajuntou
muito mel;; tenho necessidade de mãos estendidas que a recebam. Mas,
para isso, eu tenho de descer às profundezas, como tu o fazes na
noite e mergulhar no mar… Como tu, eu também, devo
descer…
Abençoa, pois a taça que deseja esvaziar-se de novo…
Assim
se inicia a saga de Zaratustra, com uma meditação sobre a
felicidade.
A felicidade começa na solidão: uma taça que se deixa
encher com a alegria que transborda do sol. Mas vem o tempo quando a
taça se enche. Ela não mais pode conter aquilo que recebe. Deseja
transbordar. Acontece assim com a abelha que não mais consegue
segurar em si o mel que ajuntou;; acontece com o seio, túrgido de
leite, que precisa da boca da criança que o esvazie. A felicidade
solitária é dolorosa Zaratustra percebe então que sua alma passa
por uma metamorfose. Chegou a hora de uma alegria maior: a de
compartilhar com os homens a felicidade que nele mora. Seus olhos
procuram mãos estendidas que possam receber a sua riqueza.
Zaratustra, o sábio, transforma-se em mestre. Pois ser mestre é
isso: ensinar a felicidade.
"Ah!",
retrucarão os professores, "a felicidade não é a disciplina
que ensino. Ensino ciências, ensino literatura, ensino matemática…"
Mas será que vocês não percebem que essas coisas que se chamam
"disciplina", e que vocês ensinam não é um deleite para
a alma? Se não fosse, vocês não deveriam ensinar. E se é, então
é preciso que aqueles que recebem, os seus alunos, sintam prazer
igual ao que vocês sentem. Se isso não acontecer, vocês terão
fracassado, na sua missão, como a cozinheira que queria oferecer
prazer, mas a comida saiu salgada e queimada.
O
mestre nasce da exuberância da felicidade. E, por isso mesmo, quando
perguntado sobre a sua profissão, os professores deveriam ter
coragem para dar a absurda resposta: "Sou um pastor da alegria…"
Mas, é claro, somente os seus alunos poderão atestar da verdade da
sua declaração…
ALVES,
Rubem. “A alegria
de
ensinar”.
Campinas, SP: Papirus, 2000.
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