FLOR NA FENDA DA ROCHA
Rubem
Alves
A
coisa não fazia sentido. Não chegava a ser carta. Um bilhete,
escrito numa folha de bloco amarelo, rasgada pelo meio. O nome que a
assinava não me fazia lembrar ninguém. Vinha de algum lugar dos
Estados Unidos. Pensei que se tratava de mais uma dessas pessoas
estranhas que escrevem coisas sem nexo para desconhecidos.
Por
alguma razão que eu ignorava eu fora escolhido. Dois dias depois uma
carta de um amigo me explicou o mistério. O bilhete me fora enviado
de uma prisão. O preso tinha sido executivo de uma multinacional. De
repente, não mais que de repente, se deu conta de que a vida era
muito breve e que a sua verdade mais profunda era outra.
Aquilo
que estava fazendo não era o que desejava fazer. O que ele amava,
mesmo, era a natureza com suas belezas e mistérios: o silêncio das
montanhas cobertas de neve, as matas com suas árvores e seus bichos,
os rios de águas transparentes. E no entanto — ele o sabia — por
todos os lados os homens de guerra a haviam violentado, enchendo-a de
instrumentos de morte: fábricas de bombas nucleares, fortalezas
subterrâneas onde se aninhavam foguetes cheios de morte. Que lhe
adiantava entregar sua vida ao enriquecimento de uma multinacional se
este mundo, nosso lar, poderia, a qualquer momento, ser transformado
numa imensa solidão: os homens mortos, as florestas queimadas, as
montanhas solitárias, os rios correndo transformados em veneno?
Demitiu-se. Pensaram que um emprego melhor lhe tinha sido oferecido.
Quando contou o que iria fazer julgaram-no louco. Desfez-se de tudo o
que tinha: é preciso leveza, nada que segure. Colocou as poucas
coisas que lhe eram necessárias numa mochila: pode-se viver com
muito pouco. Entre suas coisas, dois ou três livros: é bom caminhar
com aqueles que sonham os mesmos sonhos, ainda que estejam distantes
e o que deles se tenha seja apenas o que escreveram. Assim, mesmo
longe, se forma a companhia dos conspiradores, pessoas que respiram o
mesmo ar — com-inspirar. Ficamos amigos sem que nunca nos tenhamos
encontrado. Sem ter casa fixa, juntou-se a um grupo de pacifistas.
Mas, o que pode um grupinho insignificante contra o poder da morte?
Muito pouco. Mas não importa. É preciso obedecer à voz interior da
verdade. Contra a loucura forte dos homens de guerra só resta a
loucura mansa dos homens de paz.
Passaram,
então, de forma obstinada e tranquila, a fazer uma única coisa.
Invadiam pacificamente as instalações nucleares norte-americanas,
caminhavam na direção dos lugares onde se fabricava a morte, e se
assentavam nos locais rigorosamente proibidos. Para quê? Só para
dizer a sua verdade. Que prefeririam morrer a matar.
Que
a derrota militar é preferível à destruição do mundo. Mil anos
de cativeiro são preferíveis a uma vitória nuclear. Pois no
cativeiro permanece a esperança de que a vida poderá nascer livre
de novo. Mas numa vitória nuclear só sobrarão os mortos. A vida é
um valor mais alto que as ilusões da guerra. Seu gesto manso durava
pouco porque a morte não anda a pé. Logo chegavam os soldados
armados que os levavam presos. E eram condenados pelos tribunais, por
sua lealdade à verdade.
Aquele
bilhete esquisito me viera de uma dessas prisões. Dois anos atrás
me escreveu de novo, de outra prisão. Seria libertado no dia
seguinte e me dizia da sua alegria, pois dentro de poucas horas
poderia de novo ver os céus estrelados. Contou-me o que acontecera.
Ele e seus amigos haviam resolvido repetir o mesmo gesto. Iriam se
assentar sobre os silos atômicos — os lugares onde os foguetes
ficam guardados, em posição de disparo — de uma instalação
nuclear localizada no norte dos Estados Unidos. O lugar era lindo,
paraíso, reserva florestal cheia de todas as formas de vida. Por uma
semana ali ficaram, gozando a beleza das matas, dos animais, dos
rios. Descreveu-me as aves e os bichos. Disse-me da alegria mística
que tal comunhão com a natureza lhe dava: sentimento muito próximo
do sagrado — pois a natureza está cheia de beleza e de mistérios.
Depois de uma semana todos caminharam para os silos, assentaram-se
sobre eles, e em poucos minutos estavam todos presos. No ano passado,
duas semanas antes da Semana Santa, escreveu-me contando que iriam
fazer coisas semelhantes no Domingo de Páscoa, para testemunhar o
triunfo da vida sobre a morte. E agora, de novo fora da prisão,
escreveu-me de um mosteiro trapista, no alto das montanhas rochosas.
Preparava-se para subir até os lugares mais altos, para usufruir uma
semana de solidão e silêncio. Para longe do falatório, para perto
da tranquilidade onde se pode ouvir a voz da verdade interior.
Longe,
sem nunca tê-lo visto, ele me ajuda a viver. O mundo está cheio de
pessoas simples e nobres, capazes dos gestos mais loucos por pura
fidelidade à sua verdade. A vida, pelo mundo todo, e a despeito da
morte que vai comendo corpos, florestas, mares e rios, continua a se
afirmar teimosamente como uma planta que nasce numa fenda de rocha.
Como a minha “Glória da Manhã”, que a morte cortou e continuou
a florir, o Ladon Sheats (este é o seu nome) teima em florescer...
Ladon
Sheats + 1934 - 2002




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