DE CABEÇA PARA BAIXO
por Rosane Oliveira 
























Sempre pensei em como são parecidas a postura do Yoga chamada “Sirsasana” (invertida sobre a cabeça) e a carta do Tarot de Marselha chamada “O Pendurado".

Sirsasana, a posição invertida sobre a cabeça, é seguramente um dos asanas mais desafiantes na prática yóguica. Salvo as sempre possíveis exceções, acredito que, não só eu, mas a grande maioria dos praticantes iniciados sente dificuldade em executar o Sirsasana, uma vez que o nosso corpo não está inteiramente programado para essa posição e que aprendemos desde cedo, pela cultura racionalista em que estamos inseridos, que é preciso “botar a cabeça no lugar” e “não perder a cabeça”, “deixar os pés no chão”, significando manter a mente racional no controle da vida. 

Meu interesse pelo tema se deveu, principalmente, à dificuldade pessoal de ficar com o corpo invertido. Lembro-me que, quando criança, dava cambalhotas, mas não me lembro de “plantar bananeiras” ou “dar estrelas”. Pelo contrário, nessa parte da brincadeira, eu ficava apenas observando, tentava, mas o pulo saía pela metade, sem ficar totalmente de cabeça para baixo e, desistindo, passava logo para um outro entretenimento. Curiosamente, só resgatei essa lembrança quando comecei a prática de Yoga, pois nunca, em meu cotidiano de adulta, fui solicitada objetivamente para que meu corpo invertesse, literalmente falando. 
 
Ao me deparar com o Sirsasana no Yoga e ao saber que esta era uma postura presente no yoga que eu teria que praticar, fiquei angustiada. Voltou-me um medo esquecido, que estava inconsciente por muito tempo. Mas, junto com esse processo, também percebi a possibilidade de elaborar aquelas sensações e, a partir da consciência delas, a oportunidade de buscar um entendimento pessoal sobre o que está por detrás do ato de inverter, organicamente, simbolicamente, psiquicamente. 
 
Sirsasana é uma postura complexa, que envolve o equilíbrio e a força muscular - sobretudo dos ombros, braços e costas, e músculos abdominais, que desempenham um papel central na sua execução. Porém, como qualquer outra postura de Yoga, abrange uma ativação da consciência de dimensões mais internas, psíquicas e energéticas. A posição vertical, pés plantados no chão, comumente, nos passa uma ideia de ação, atividade, controle, segurança, estabilidade. De normalidade. Podemos ir a qualquer lugar com nossos próprios pés. Enquanto isso, a posição invertida nos dá a sensação de vulnerabilidade, de instabilidade, inatividade, desarrumação. De anormalidade. 
 
Visualmente, Sirsasana é o mesmo homem pendurado da carta 12 do tarô, e, acredito que, simbolicamente, também é possível pensar algumas relações. 
 
A carta 12 do Tarot de Marselha apresenta um moço que está dependurado de cabeça para baixo, amarrado por um pé a uma forca, cujos postes são árvores truncadas, cada uma das quais com seis cotos que sangram onde os galhos foram podados. O homem suspenso observa o mundo de cabeça para baixo. As mãos estão atrás do corpo, e não sabemos se estão presas ou não, mas sugere uma postura em que o rapaz não possui poder para moldar sua vida nem controlar seu destino. O rapaz não possui poder pessoal, está submetido a uma força superior a ele. 
 
Segundo a estudiosa do Tarot, Sallie Nichols, à primeira vista, a figura do Pendurado pode parecer indefesa, mas, após uma observação mais cuidadosa, pode-se perceber que sua expressão não manifesta sofrimento, poderíamos até sugerir que ele parece estar meditando. Pode querer dizer, também, um novo olhar sobre uma determinada situação, uma alteração de comportamento, o abandono de hábitos; uma atitude de recuar para poder avançar; abandonar a tirania do controle mental sobre as situações. 
 
Porém, quando o Yoga começou a se integrar em minha vida, e com ele, as posturas invertidas, minhas impressões e sensações com a carta do Pendurado, e, com as posturas invertidas, também foram se modificando. 
 
Ficar de cabeça pra baixo, surpreendentemente, surgiu como uma experiência que podia ser agradável pra mim. Obviamente, não aconteceu de uma hora para outra. 
Comecei, então, a vivenciar um conjunto de experiências com essa postura. No início, o mais claro era o medo. Ficar pouco tempo na postura; perceber a mente trabalhar incessantemente, numa ansiedade de pensamentos e fantasias psíquicas como despencar da corda, cair no chão, quebrar o pescoço, como se quebra um galhinho de árvore fazendo um ‘trec’, “perder a cabeça”. Foram esses os primeiros pensamentos. Mas em seguida, essa postura também me trouxe uma outra surpresa: a de que sentia meu corpo mais forte, firme, ativo e não passivo como aparecia nas fantasias. Compreendi que também não era o caso de deixá-lo duro, rígido, porque assim, também não conseguia equilíbrio. 
 
Após fazer essa familiarização corporal, começaram outros tipos de sensações e interesses na postura. Instigou-me uma curiosidade de olhar tudo de cabeça pra baixo. E era apenas nisso que fixava minha atenção. Mas assim, também perdia o equilíbrio. 
 
Essa sensação passou a ser mais íntima, isto é, passou a ser um ‘sentir’, sem precisar olhar para as coisas, como antes. Da mesma maneira que o Pendurado, que vê as coisas de cabeça pra baixo, eu aprendi a ver o mundo a minha volta com outros olhos, sob ângulos diferentes. Pois, enquanto nós não experimentamos ver tudo invertido, tendemos que achar que há apenas uma única maneira de ver o mundo ao nosso redor. E, por esse ponto de vista, ver a vida "de cabeça para baixo" é uma experiência transformadora.

Referência Bibliográfica: 
Nichols, Sallie. Jung e o tarô - uma jornada arquetípica. SP: Editora Cultrix, 1980.

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