OS MORADORES DO ALBERGUE 
Rubem Alves 


Duas casinhas, uma é azul, a outra é rosa. Em cada casinha mora uma pessoa, uma única pessoa. Na casinha azul mora um homem. Na casinha rosa mora uma mulher. 

Os dois gostam de aparecer na janela. Mas nunca mostram o rosto. Sempre usam máscaras: risonhas, tristonhas, de criança, de velho, de santo, de demônio. Seus verdadeiros rostos ninguém jamais viu. Nem mesmo eles. 

Esse é o resumo de uma das mais antigas teorias psicológicas. As casinhas são nossos corpos. Em cada um mora uma pessoa, uma única pessoa. Persona, em latim, quer dizer máscara , as máscaras que os atores de teatro usavam. 

Assim, a etimologia nos diz o que somos: atores. Vivemos representando "papéis". Por vezes representar um papel é um artifício consciente intencional e safado. Essa é a essência da hipocrisia, que em grego quer dizer "representar um papel". O hipócrita é aquele que usa uma máscara com o propósito de enganar: ele mostra um rosto que não é o seu. Chegando em casa, longe dos outros, ele dá risada e tira a máscara ... Mas mesmo tirando a máscara o que ele vê não é o seu rosto; é uma outra máscara. 

O fato é que as pessoas nunca tiram as máscaras. Usam máscaras até mesmo quando se olham no espelho. Você nunca teve um sentimento de estranheza ao se contemplar no espelho? Você nunca se viu e se perguntou: "quem sou?" 

Quem somos? Seres nascidos para o teatro. Somos, essencialmente, atores. Representamos "papéis" o tempo todo. A alma é o script de uma peça. Para conhecer a alma basta montar um palco, distribuir máscaras e papéis, e começar o espetáculo. À medida que o espetáculo se desenrola a alma vai se revelando. Que revela ela? Seu rosto sem máscara? Não. Ela revela as máscaras e os papéis de sua predileção. Sobre esse pressuposto se assenta a teoria do psicodrama, que poderia também ser chamado de psicomédia. "Penso, logo existo", dizia o filósofo que não pensava sobre essas coisas. Comenta o poeta, que se sabia irremediavelmente um fingidor: "Que sei do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas eu penso tanta coisa".

Assim diz essa teoria, mas eu tenho estado desconfiado de que as coisas não são bem assim. E é esse esboço de teoria que eu gostaria de submeter àqueles cujo ofício é cuidar da alma. Começo invertendo as coisas: a casinha não é a residência particular de um único morador. É um albergue que não é de ninguém. Aquela pessoa que se apresenta como dona é apenas um síndico que, a qualquer momento, pode ser despedido. Quando o síndico é despedido o albergue vira uma zorra. Além disso eu digo que aquilo que se parece com máscaras não são máscaras. São rostos de verdade, todos muito parecidos. Parecidos mas muito diferentes. Não têm os mesmos pensamentos. Não têm os mesmos sentimentos. Não se entendem. E, no entanto, são obrigados a viver numa mesma casa. Os períodos de ordem e tranqüilidade não passam de uma trégua. A guerra pode estourar a qualquer momento, por um "dá cá aquela palha". Alguns albergados chegam a se odiar. Não é raro que aconteçam assassinatos: não suportando o ódio, um mata o outro. Quando isso acontece dentro da casa, do lado de fora aparece como suicídio. Mas essa palavra, "suicídio", que significa "matar-se", é um equívoco. Diz Benedictus de Spinoza, na 6ª proposição da parte III da sua Ética: "Cada coisa, enquanto existe em si, esforça-se por perseverar no seu ser". Ninguém deseja morrer. A vida deseja continuar a viver. O que acontece é o seguinte: um dos moradores, esforçando-se por perseverar no seu ser, e vendo-se insuportavelmente ameaçado por um outro morador do mesmo albergue, não vê outra solução para tal situação a não ser o assassinato do seu inimigo. Acontece que, para matá-Ia, ele tem de destruir a casa onde ambos moram: o corpo.

Essa é uma hipótese. Uma hipótese que se pretenda científica não pode prescindir de uma revisão bibliográfica do assunto. Infelizmente não encontrei pesquisas estatisticamente fidedignas sobre a questão em pauta. O pobre Freud também não encontrou nenhuma pesquisa que corroborasse suas loucas hipóteses. Encontrei referências, sim, nas superstições populares e na literatura. O mito popular do lobisomem afirma que num mesmo corpo convivem pelo menos dois, moradores, um deles podendo ser um filantropo sensível, o outro sendo um lobo feroz que sai do seu esconderijo nas noites de lua cheia. Esse mito, transposto para a literatura, tornou-se a novela sobre o Dr. Jeckill, médico bondoso, e o Mr. Hide, monstro cruel, ambos morando no mesmo albergue.

Freud percebeu que o corpo era uma casa de três andares, onde moravam três moradores muito diferentes. No térreo mora um pacato cientista, professor, de hábitos tranqüilos e racionais. No porão mora um playboy sem juízo, que se entrega pela noite adentro a orgias barulhentas. No andar superior funciona um tribunal onde são julgados, condenados e freqüentemente punidos os que se desviam das leis impostas pelo juiz que preside o dito tribunal. Os nomes dos moradores são, respectivamente, Ego, Id e Superego. 

Fernando Pessoa não precisou elaborar teoria sobre o assunto. Ele era um exemplo vivo de albergue onde moravam os mais variados personagens, mais de trinta, chamados heterônimos, cada um deles com biografia própria, filosofia distinta, estilo peculiar e sentimentos específicos: Alberto Caeiro não pensa, não sente e não escreve como Ricardo Reis, que não pensa, não sente e não escreve como Álvaro de Campos, que não pensa, não sente e não escreve como Bernardo Soares - e assim por diante. Não se trata de pseudônimos. Pseudônimo é uma máscara que um escritor pode usar para se esconder ou se identificar. O caso de Fernando Pessoa era outro: ele era literal e literariamente "possuído" pelos heterônimos. Sua identidade civil era definida por sua carteira de identidade: um único indivíduo, Fernando Pessoa. Mas nesse corpo de um nome só moravam muitos e diferentes outros que se alternavam. Tanto aprovaria minha teoria que chegou a confessar: "Meu coração é um albergue." 

Tenho estado tentando fazer um inventário das muitas entidades que podem morar no corpo. Freud sugeriu três. Fernando Pessoa, nem sei quantas. O demônio disse que era uma legião. Tendo a concordar com o demônio. Há moradores de todo tipo - e o curioso é que o corpo, parece, não faz uma investigação das credenciais do pretendente a albergado, antes de aceitá-Io como morador. 

Eis alguns deles: o depressivo, de poucas palavras; o alegrinho falador, insuportável; o sargento que gosta de dar ordens; a bruxa horrenda de voz gritada; o torturador sádico; o filósofo sábio; o místico; o romântico apaixonado; o invejoso, verde; o ciumento; o mal-humorado, que acha tudo ruim; o carrasco; o rancoroso, que se compraz em esgravatar o passado; o canalha; o moralista; a perua; o velho; a criança ... A lista não tem fim. Com a ajuda do seu analista você poderá fazer um inventário dos tipos que moram no seu albergue, a fim de compreender as confusões que acontecem no seu corpo. 

Em suas origens etimológicas "demônio" não tem o sentido mau que lhe damos. Sócrates dizia ser inspirado por um agathàs daimon, um demônio bom. Demônio era apenas uma entidade espiritual que podia ser boa ou má. Ao se acreditar no demônio PhD em psicologia, o corpo pode ser entendido como um albergue que é constantemente visitado e "possuído" por uma variedade de demônios. "Possessão demoníaca" é quando o corpo, pretensamente possuído pelo síndico, é invadido e dominado por um daimon diferente dele. A gente sabe que o albergue está possuído porque ele começa a fazer coisas que comumente não faz. Se for um daimon ruim, ele vai fazer estragos no albergue. Se for um daimon bom - por exemplo, o Espírito Santo o albergue vai ser pintado e varrido.

Se meus colegas psicanalistas e terapeutas acham muito maluca a minha teoria, recordo-Ihes o dito por Pairbairn: 

"É então evidente que o psicoterapeuta constitui o verdadeiro sucessor do exorcista. Sua missão não é 'perdoar pecados' e sim 'desalojar os demônios'."

In: O amor que acende a Lua, Campinas, SP: Papirus, 1999.


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