CASA DO SANTO – 28/09/19
Texto
da profa. Eliane Oliveira
O
velho pai de santo do terreiro de umbanda. Ele também era o dono da
loja. Casa do Santo. Era o nome. Um ficava perto da outra. Só
atravessar a calçada. Um grande pilão na porta, ao lado de estátua
da Pomba Gira, do Exu e da Iemanjá em tamanho adulto. Cestas, velas,
ervas. Atabaques e chocalhos. Tapetes de palha. Vasos de barro.
Conchas do mar. Barquinhos de madeira. Cocares de índio. Chifre de
boi. Cheiro forte de incenso. Um altarzinho no alto da parede dos
fundos com Jesus de braços abertos e coração manifesto, iluminado
por uma lampadazinha aos seus pés. Um balcão feito com estrutura de
madeira. Vitrine que apresentava aos clientes delicadas miçangas,
anéis, colares, brincos, tiaras. Acima do balcão, um baleiro de
vidro, igual o da “balas de leite kids, a melhor bala que há” –
quem tiver mais de 40 anos saberá do que estou falando. Prateleiras
com dezenas de outros produtos, dentre os quais estavam os potes com
quebra-queixo. Quebra-queixo é um doce feito de açúcar caramelado
e pedaço de coco dentro. Não quebra o queixo coisa nenhuma, mas
gruda no dente quando se mastiga. Deve ser daí o nome. Conheci
quebra-queixo naquele dia. Tinha uns nove anos.
O
moço da Casa do Santo me viu chegando ao seu balcão. “Moço,
quero uma caixa de fósforo”. Ele me lembrava o Tio barnabé do
Sítio do Pica Pau Amarelo. Senti a força dele e do lugar desde a
entrada. Espiritualidade da floresta. Silêncio. Encantamento.
Ancestralidade. Preto-Velho. Amoroso e preocupado, quis saber “Pra
que eu precisava de fósforos?”. “São pra minha mãe”. Ela,
que é católica e de família católica praticante de longa linhagem
de católicos, não só não viu problema algum em que sua filha
comprasse fósforos na loja em que se vende artigos de umbanda e
candomblé, de quem o dono e vendedor era o pai de santo do terreiro
da esquina, como deu preferência que eu lá fosse, ao invés da
padaria, dos botequins e do mercado do bairro. Tudo bem que a Casa do
Santo era um pouco mais perto da minha casa. Mas, se sua leitura
católica seguisse dogmatismos e preconceitos, possivelmente uma
postura de rejeição e desprezo imperaria, e sua orientação teria
sido que eu me afastasse da Casa do Santo em qualquer hipótese,
inclusive para comprar fósforos, mesmo que tivesse que ir mais
longe. Dito de outra maneira, reconhecer a Casa do Santo como loja
significava também reconhecê-la em sua dignidade religiosa, mesmo
que, daquela religião, minha mãe não compartilhasse. É estranho
que se tenha que enfatizar isso. Mas é preciso. Sobretudo em tempos
em que, sob sombria inconsciência, há quem identifique tudo o que é
diferente de si mesmo como inimigo. E, em nome de Deus, chega-se até
ao extremo de querer seu extermínio.
É
bom que se lembre e nunca se esqueça que religiões brasileiras de
matriz africana, desde a escravidão, foram demonizadas e agredidas
pelas instituições religiosas tradicionais dominantes e perseguidas
pelo Estado. Para rezarem para seus orixás, sem serem violentados,
tiveram que cultuá-los implicitamente em imagens de santos
católicos. Ao longo da história, mantiveram-se no subterrâneo,
acompanhando o exílio de seus sujeitos, lançados às margens da
sociedade após uma abolição só no papel. Favelas. Periferia.
Rejeito. Nova Senzala. Mas, apesar dessa exclusão estrutural,
resistiram, em nome do sagrado e da memória de seus antepassados.
Essa altivez era vista fortemente na Casa do Santo. Parte da
vizinhança menosprezava-a, chamando-a genericamente de “casa de
macumba”, ao que o velho pai de santo, orgulhosa e pacientemente,
corrigia: “É ‘Casa do Santo’”.
Depois
de me vender os fósforos, dirigiu-se até os potes de quebra-queixo.
Encheu a mão com um punhado deles e me deu. O docinho pequenininho
embrulhadinho com celofane. Recebi e agradeci com sorriso de criança
quando vê doce. Selamos uma amizade. Ou melhor, recordamos uma
amizade antiga e sempre havida do Preto Velho (mestre, sábio, vô)
com o Erê (discípula, aprendiz, neta), baseada no respeito ao
legado e à sabedoria das tradições, para muito além de qualquer
pertencimento religioso. Quem sabe não foi a partir desse encontro
que comecei a praticar antropologia? Axé, amigo! Amém, mãe!
Namastê, todos os mestres! 🕉️🏹🙏
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