ENSINAR A ALEGRIA
Por Rubem Alves
Mas, para isso, eu tenho de descer às profundezas, como tu o fazes na noite e mergulhas no mar… Como tu, eu também devo descer…
Abençoa, pois, a taça que deseja esvaziar-se de novo…"
Rubem Alves, no livro “A alegria de ensinar”. São
Paulo: Ars Poetica Editora Ltda, 1994.
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Por Rubem Alves
"Quando Zaratustra tinha 30 anos
de idade deixou a sua casa e o lago de sua casa e subiu para as montanhas. Ali
ele gozou do seu espírito e da sua solidão, e por dez anos não se cansou. Mas,
por fim, uma mudança veio ao seu coração e, numa manhã, levantou-se de
madrugada, colocou-se diante do sol, e assim lhe falou:
Tu, grande estrela, que seria de
tua felicidade se não houvesse aqueles para quem brilhas? Por dez anos tu
vieste à minha caverna: tu te terias cansado de tua luz e de tua jornada, se
eu, minha águia e minha serpente não estivéssemos à tua espera. Mas a cada
manhã te esperávamos e tomávamos de ti o teu transbordamento, e te bendizíamos
por isso.
Eis que estou cansado na minha
sabedoria, como uma abelha que ajuntou muito mel; tenho necessidade de
mãos estendidas que a recebam.
Mas, para isso, eu tenho de descer às profundezas, como tu o fazes na noite e mergulhas no mar… Como tu, eu também devo descer…
Abençoa, pois, a taça que deseja esvaziar-se de novo…"
Assim se inicia a saga de Zaratustra, com uma
meditação sobre a felicidade. A felicidade começa na solidão: uma taça que se
deixa encher com a alegria que transborda do sol. Mas vem o tempo quando a
taça se enche. Ela não mais pode conter aquilo que recebe. Deseja transbordar.
Acontece assim com a abelha que não mais consegue segurar em si o mel que
ajuntou; acontece com o seio, turgido de leite, que precisa da boca da criança
que o esvazie. A felicidade solitária é dolorosa. Zaratustra percebe então que
sua alma passa por uma metamorfose. Chegou a hora de uma alegria maior: a de
compartilhar com os homens a felicidade que nele mora. Seus olhos procuram mãos
estendidas que possam receber a sua riqueza. Zaratustra, o sábio, se transforma
em mestre. Pois ser mestre e isso: ensinar a felicidade.
“Ah!”, retrucarão os professores, “a felicidade não
é a disciplina que ensino. Ensino ciências, ensino literatura, ensino
história, ensino matemática…” Mas será que vocês não percebem que essas
coisas que se chamam “disciplinas’’, e que vocês devem ensinar, nada mais
são que taças multiformes coloridas, que devem estar cheias de alegria? Pois o
que vocês ensinam não e um deleite para a alma? Se não fosse, vocês não
deveriam ensinar. E se é, então é preciso que aqueles que recebem, os seus
alunos, sintam prazer igual ao que vocês sentem. Se isso não acontecer, vocês
terão fracassado na sua missão, como a cozinheira que queria oferecer
prazer, mas a comida saiu salgada e queimada…O mestre nasce da exuberância da felicidade.
E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua profissão, os professores
deveriam ter coragem para dar a absurda resposta: “Sou um pastor da alegria…”.
Mas, e claro, somente os seus alunos poderão atestar da verdade da sua
declaração…
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