FUNDURAS EM MIM - por Profa. Eliane Oliveira




O outro lado do raso. Fundo. Olhava para a água de lá. Sete ou oito anos. Pés na beirada da borda. Densidade azul hipnótica. Chamava-me para dentro. Era mais forte que eu. Tinha que pular. Esticava os braços acima da cabeça, unia as mãos em prece e, como uma seta, embicava o corpo para a água. Pulava. De cabeça. Ai, que coisa boa! Piscina do clube. Eu não sabia (oficialmente) nadar. Quer dizer, não aprendi em escola. Aprendi observando meus irmãos mais velhos, sincronizando braçadas alternadas com pernadas frenéticas. Copiava os movimentos deles. Nadava. Havia a piscininha das crianças (bobinha para meus desejos edípicos de piscina) e a piscina dos adultos, semiolímpica, com arraias, fundo com uns dez metros de profundidade (Aí, sim). Queria essa. Na borda lateral do fundo, um trampolim alto. Bem alto. Dez metros, talvez. Não, não pulava do trampolim. Mas pulava dos blocos de concreto sobre a borda da piscina, que elevava, há mais um metro do chão, o salto para o fundo. Deus, cadê os pais dessa criança? Meu pai me monitorava. Da borda da piscina, pertinho de mim, ficava me acompanhando em meu nado. Observava atento. Caso precisasse, saltaria para me acudir. Mas nunca me negou, em meu impulso, de ir lá, do outro lado do raso, pular no fundo. Sozinha. Pelo contrário, no fundo, ele vibrava com minha vontade e meu atrevimento: “Vai lá, minha filha! Vai (pro)fundo!”. Do fundo pro raso. Do raso pro fundo. Dezenas de vezes. Era uma passagem que só eu podia fazer. Sob o encorajamento, cumplicidade e cuidados do meu pai. 

Na praia (ó Mar, doce e amado Mar, poderia falar somente de você hoje, já que és, pra mim, um grande mestre), era semelhante. Sem graça tomar banho de baldinho na beirinha, antes do quebra-mar. Eu queria era ultrapassar a linha das ondas espumantes, e alcançar lá onde o mar é caudaloso, grande, escuro, onde não se sente a areia sob os pés, nem se estremece com impacto das ondas. As ondas nervosas quebram lá na frente. Aqui, tudo é calmo. Aqui, o som é silencioso. Aqui, não há perigo. Oito ou nove anos. Minha mãe, ficava lá na beira da praia fazendo com o braço um movimento gigante de “vem pra cá”, “aí já está bom”, “não vão tão longe”. Eu não estava sozinha. Com meu pai e irmãos. “Me leva lá pro fundo?” - pedia. Levavam-me, mas só quando o mar podia me receber, pequenina, sem muitos tropeços e correntezas. O Rinaldo, meu irmão mais velho depois de mim, com aquelas suas famosas brincadeiras em tom meio macabro, ia me carregando pelos braços para o fundo, enquanto dizia: “Você confia em mim? Vou te levar pras profundezaaasss”. Guiavam-me: “Quando vier a onda, você fura”. Ai, que coisa boa! A onda passava levinha sobre mim, suave, sem raiva, e o mar grande me abraçava de novo. Pezinhos batendo sob a água para o corpo flutuar no mar, no fundo. A essa altura, o mar era Oceano. Um lugar muito longe da terra. Um céu do mar. Um lugar fora de qualquer lugar. De pura inutilidade. Sagrado. Segredo que se aprende com quem já experimentou, aprendeu e agora ensina, por nenhuma outra razão, senão a vontade de ver você tão feliz em experimentar essa experiência como ela própria foi feliz, quando a experimentou: “vai por aqui pra ver uma coisa”, “olha só isso”, “sentiu?”, “tenta deste jeito”. Mestres. Mas, como o mar é beira e fundo, o aprendizado apenas se completa quando se retorna para a beira: “Quando vier a onda, vai com ela”. Projetavam-me para eu pegar jacaré sobre a onda, e, então, voltar à praia.

Vinte litros num balde de água. No quintal da casa da Água Santa, um bairro do subúrbio do Rio. Vivi ali por vinte anos. Minha mãe enchia um balde de água, daqueles de vinte litros. O balde era quase do meu tamaninho. Quatro, cinco ou seis anos. Eu, meus irmãos e irmã juntos brincando no quintal, enquanto ela aguava o jardim. O que eu fazia? Metia a cabeça dentro do balde calmamente e ficava com a cabeça afundada, ouvindo o nada, por alguns segundos. Ai, que coisa boa (Já fez essa experiência? Ouve-se realmente o nada. Já ouviu o nada?)! Depois, eu retirava a cabeça, jogando o cabelo tipo “boi lambeu”, embebido de água, para fora do balde, a qual fazia um percurso extenso, molhando tudo a volta (tudo bem, porque tudo estava molhado mesmo!). Liberdade se encontra num balde de vinte litros. Mãe dizia que daria dor no ouvido. Vigiava-me para que as minhas experiências subaquáticas fossem só algumas, mas nunca me impediu que eu me atirasse nelas. Pelo contrário, eu ouvia de seus olhos um entusiasmo e um incentivo: “Vai lá, minha filha, ouve o fundo! Agora, volta. Fique aqui agora, à tona, no colinho da mamãe e me diga o que trouxe para nós lá debaixo d’água, depois do seu mergulho”. 

Ou então era na caixa d’água de amianto, que foi comprada para ser caixa d’água, mas não foi usada como caixa d’água. 2.000 litros d’água. Profundidade que me cabia sentada e/ou com as pernas esticadas na horizontal. Virou piscina. Ali, durei mais tempo. Por anos, enchíamos “a caixa” para “tomar banho de caixa”. Eu ia me afundar “na caixa”, nas manhãs, tardes ou noites quentes de verão. Minha mãe era quem vinha verificar, de vez em quando, se eu ainda estava viva, de tão quieta. E depois me deixava. Quieta. Com o corpo todo afundado, só a cabeça pra fora. Como um submarino. A água não se mexia. Ouvindo o som dos pássaros nas árvores do quintal quando era dia; olhando as estrelas do céu, quando era noite. Experiências de meditação. Imersão. Útero. Inconsciente. Calmo. Meia hora, uma hora. Tempo sem tempo. Eternidade. Até emergir, ficar novamente de pé. E, embebida das funduras em mim, agora voltar para funduras fora de mim, no convívio da casa e da família. 

A vida imita a vida. Uma vez ido aos fundos, você não poderá nunca mais não ir a eles (ou, pelo menos, ignorá-los). As consequências são irreversíveis. Possivelmente, você se interessará por funduras de todas as dimensões, para vivê-las à tona (Se não for para trazê-las à tona e vivê-las, o fundo será tão raso quanto o raso é para o raso. Fundo e raso são o mesmo todo: um só é um com o outro). Estudo. Pesquisa. As entranhas dos conhecimentos. As essências. As raízes. Poesia. A alma humana. Natureza. Oração. Silêncio. Música, antropologia, yoga. Antigas tradições filosóficas, espiritualistas e religiosas. Meditação. Deus. Entrega. Confiança. No amor, apaixonar-se-á perdidamente, mergulhando de cabeça em histórias profundas e duradouras. Amigos serão como irmãos e irmãos como amigos. Intuições, transmissão de pensamento, sincronicidade, premonição acontecerão frequentemente, pois serão naturais e não sobrenaturais. Sua natureza estará conectada ao Mistério que mora no profundo. O mundo, a sociedade, as culturas e cada pessoa terão a mesma importância pra você que você tem pra você, porque você descobrirá que você e o outro são interdependentes. E que é preciso cuidar (curar) da alma deles como você deve cuidar (curar) da sua. Tudo está enredado.

Você pagará mico. O mico não é muito aceito nas instâncias do raso, mas nos fundos, o mico é uma coisa muito legal. Uma ponte para o Samadhi (iluminação). Eu, por exemplo, sou uma grande pagadora de micos. Especialmente para manifestar amor, de qualquer tipo (fraternal, filial ou “namoral” - não encontrei outro adjetivo). Não fique com vergonha alheia de mim nem tenha medo de mim achando que eu sou maluca, por exemplo, eu manifestar meus sentimentos, ideias, pensamentos a você, às vezes sobre você, de um jeito tão claro, entusiasmado e direto, que você, enrubescendo-se, vai querer que o chão se abra para enfiar a cabeça, ou atravessar a rua, fingindo que não me conhece. Será tão visceral e impulsivo que, às vezes, você não saberá o que fazer objetivamente com a emoção que lhe causou. Nessa hora, não faça nada objetivamente. Respire. Receba e aceite. Se for possível, retribua. Se não for possível, disfarce e vá ali tomar uma água.

Você também poderá deixar as pessoas preocupadas com você, por causa da sua intensidade. Comigo, já houve quem ficasse em aflição, quando me viu chorando aos soluços após ouvir Vander Lee, assistir Amelie Poulain ou ler Rubem Alves. A pessoa ficou tão nervosa em me ver “entrar pra dentro” que precisei tranquilizá-la: “Eu só estou chorando. Deixa eu chorar. Calma!”. Em outras palavras: “Não pense que me afogarei no caminho até o fundo. Dá-me espaço para me jogar nesse Oceano. Permita-me entrar para ver Deus. Vou ali e volto. E, quando voltar, estarei um pouco mais aqui e agora, com você e com o mundo. Quando, então, poderei ver Deus também na superfície”. 


Espaço Uddiyana Yoga - Rua Almirante Tamandaré, 66/525 - Flamengo RJ

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